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Thursday, April 15, 2004

Caça

O pai canibal, a mãe canibal, o filho canibal.
A floresta.
As flechas de pontas envenenadas
Apontavam as presas
Prendiam-nas.
A jovem canibal, ou não, refrescava-se na represa.
Nua, escultural, pura.
O filho acendeu a fogueira.
A água no caldeirão fervilhava.
Comeram a mãe.

À tarde regressaram a casa,
O pai canibal, o filho canibal,
A jovem, nua, escultural, pura
Canibal, ou não.

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Pesca

O pai pescador, a mãe pescadora, o filho pescador.
O avô pescador também.
O rio e a barragem.
As canas de pesca os anzóis afiados.
De dupla barbela.
Os achigãs, as carpas e os barbos…
Um a um introduzidos na manga.

Fizeram uma caldeirada de avô e avó.
Vazaram a manga na barragem.

Para preservação da espécie.

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Escultura

Despiu-a.
Corrigiu-lhe a posição.
Um braço circundava a cabeça
Primorosamente colocado atrás do pescoço.
Ou outro corria-lhe pelo corpo.
Assentou-lhe uma mão sobre a púbis.
Ficou quieta.

O balde do gesso esvaziado sobre o corpo quieto.
Outro balde.
O corpo quieto.
Ainda outro.

O corpo continua quieto
Em exposição.

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Design

Tirou o último cigarro do maço
Tossiu.
Olhou para cima da estante
Onde um relógio de pau-preto,
Sem debruns nem de ouro nem de latão amarelo,
Mas com mecanismo suíço,
Lhe apontava as 4h32m.
Não teria tempo de comprar outro maço.

Sentou-se na cadeira, em couro enrugado, da secretária
Balançou a cadeira para trás
Esticou o braço
E enfiou o cigarro na boca da caveira de acrílico que lhe decorava a mesa.
Adormeceu de seguida.

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Tecnologia

Quais Evita e Peron,
Na varanda acenavam
Ao ensurdecedor barulho.

Quando voltaram para casa,
A multidão de seres minúsculos esverdeados
Voltou para o pólo
Onde tinha sido descoberta a água.

A nave voltou quatro dias depois.
De mãos dadas olhavam o álbum de fotografias
Que se auto-sustentava num campo anti gravítico.

Em apoteose fizeram amor.
Pairavam.

A população de robozinhos iria crescer,
Mais mês, menos mês.

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Olimpismo

As cordas, os cantos, o tapete, o gong.
A gritaria, a provocação, o aplauso.

O vermelho, o azul.
As luvas encostadas, à cara, ao peito, ao estômago.

Contou-se de um a dez
O juiz levantou-o do chão.
Abraçaram-se e levantou o braço.

O braço ainda continuava no ar
Acenando-lhe o último adeus.

No funeral ninguém pagou bilhete.

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Gastronomia

A vodka chegou em pequenos copos.
Rapidamente e de uma só vez
Viram-se os fundos.

O fígado em postas e de mãos postas
Ainda se ajoelhou rezando.
Ninguém lhe escutou as preces.

Regaram-no com vinho,
Dois dentes de alho.
Macerou umas horas.

As iscas estavam prontas.

Um shot vindo não sei de onde
Atingiu-o no baixo-ventre.

Não teve tempo de morrer com cirrose.

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Agricultura

O pai, a mãe, o filho
A charrua, o arado, a enxada
Preparados para a faina
O sol já tinha nascido.

O boi esquelético puxando.

À noite a filha mais nova
Preparava-lhes um caldo de couve-galega.

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Arquitectura

O prédio tem cento e vinte e cinco andares.
A escada vai até ao trigésimo.
Do trigésimo ao nonagésimo uma corda,
Com nós.
Daí para cima tem um elevador
Descai para a direita no sexagésimo segundo.
Uma ponte aérea atravessa-o,
No nonagésimo quinto
Onde existe um shopping center.
Lindos jardins interiores
Nos patamares do octogésimo sétimo,
Irradiam o verde no sentido norte-sul.
Um homem faz a barba,
Olhando o reflexo nos vidros espelhados
Do quadragésimo quinto andar,
E assobia.

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Futebol

Onze de um lado,
Onze do outro.
Minutos a fio pontapearam-na.

Ela nunca se defendeu.
Depois abandonaram-na, ignorando-a.

Ela nunca se queixou.
Saiu inchada e redonda.
Apenas um pouco esfolada.

À volta, as tribos entoavam cânticos de guerra.

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Passarário

A elegância no voo
A beleza nas cores
O carinho nos ninhos
A protecção ecológica
A… de andorinha,
P… de pardal e de perdiz e de pintassilgo.
A arara e o papagaio
O bico de lacre e o rouxinol
A toutinegra e a trombola
O periquito e o melro
Comos são lindos os pássaros.
Não devemos fazer mal às avezinhas.

Eu gosto muito de passarinhos fritos.

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Escrita

Abriu um caderno em branco.
Rabiscou duas linhas na primeira página
E foi dormir.
Às seis em ponto da tarde
Chovia e a chuva molhava-lhe
Os pensamentos.
Acordou, tirou o lápis de trás da orelha
Abriu o caderno quase em branco.
Acabou de o preencher.
Deu-o a ler, o editor num movimento suave
(como devem ser suaves os movimentos com as mulheres),
Mas decidido
(como devem ser decididos os movimentos dos editores),
Jogou o manuscrito no lixo de papéis.
É bem feito!
Quem manda a escritora
Pegar no lápis ainda húmida?

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Liderança

Queria ser o chefe de uma igreja.
Sempre gostou de falar
Para multidões,
Ordená-las,
Conduzi-las.
A voz potente, eloquente, convicta, empolgante.
Sabia vender ideias.
Consta que não passava recibo.

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Pintura

Dois riscos, a trincha grossa vermelha sobre a tela.
Ao longe, ouvia-se uma valsa de Strauss.
Os pincéis valsavam aqui, ali e de novo aqui.
Compondo a obra.

Na parede não se ouve nada.
Olha-se. E os pincéis, incansáveis
Continuam, agora mais lentamente,
A valsar.

O pintor morreu em valsa lenta.

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Música

Tinha uma paixão.
Sentou-se,
Aqueceu os dedos.
Alguns estalidos ecoaram no silêncio da sala.
Atacou o piano
Com Chopin.
Os primeiros acordes de Nocturnos op. 48
Faziam-se agora ouvir.
Primeiro em Do menor,
Depois em Fa sustenido.
Doze minutos e vinte segundos depois
Ouviram-se as primeiras palmas.
Ainda não estava suficientemente excitado.
Entre a op. 55 parte um, em Fa menor e
A parte dois em Mi bemol maior
Começou a arfar.
O suor escorria-lhe pela face
E só a respiração ofegante
Atrapalhava a melodia.
Parou um pouco.
Na plateia nem um ruído.
Tirou de uma caixinha de meia dúzia,
Um preservativo.
Colocou-o no piano (não no órgão) e teve um orgasmo.

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Teatro

Pum Pum
Pum Pum Pum
Pum
Pum Pum Pum

Eu finjo
Tu declamas
Ele ri
Nós aplaudimos
Vós gritais
Elas choram

O pano baixou.

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Cinema

Imagem, cor, efeitos
Desenho, luzes, roupa
Actor, câmara, montagem.

O homem ficou na fila
Esperando a sua vez
De comprar o ingresso.

Entrou, na sala sentou-se
E as luzes apagaram-se
Adormeceu.
Sonhou com o céu, com a lua,
Com o firmamento.

Escreveu a crítica no jornal.
Atribui-lhe cinco estrelas.

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